No futebol, as provocações são tão antigas quanto o próprio jogo. Na Bahia, por exemplo, as provocações ganham contornos de identidade, e torcedores do Vitória não perdem a oportunidade de provocar: “O Bahia não é mais time, é empresa.” O tom pode até ser de gozação, ou de inveja, mas no fundo a frase carrega uma realidade nova e, ao que parece, irreversível – o futebol brasileiro entrou de vez na era das Sociedades Anônimas do Futebol, ou como são mais conhecidas, as SAFs.
Até setembro de 2025, 21 dos 27 estados (incluindo o Distrito Federal) já registram clubes no formato SAF; ficando de fora o Amapá, Maranhão, Pará, Piauí, Rondônia e Tocantins.
No fim de 2024, existiam 63 clubes brasileiros que haviam adotado o modelo de Sociedade Anônima do Futebol (SAF). Também em 2024, sobre a aceitação do modelo SAF, uma pesquisa mostrava que 60% dos torcedores brasileiros aprovavam o modelo de clubes-empresa no futebol, de acordo com a InfoMoney.
Durante muito tempo, os clubes brasileiros foram associações civis sem fins lucrativos. Isso significa dizer que pertenciam, em tese, aos seus sócios e torcedores, e não podiam ser comprados ou vendidos. O modelo, considerado romântico à primeira vista, sustentou o futebol brasileiro por décadas – mas também abriu caminho para uma sucessão de gestões desastrosas, dívidas impagáveis e crises administrativas. O tempo passou e até poucos anos atrás, praticamente todos os grandes clubes acumulavam passivos gigantescos, atrasavam salários e sobreviviam com adiantamentos de cotas de TV.
Para que o leitor tenha uma ideia, em 2021, o endividamento total dos clubes da Série A ultrapassava R$ 10 bilhões. Nesse cenário, o futebol brasileiro, que sempre exportou craques e emoção, passou a exportar também sua fragilidade financeira. Foi exatamente naquele ano (2021) que surgiu a Lei nº 14.193/2021, que criou o modelo de Sociedade Anônima do Futebol (SAF). A proposta parece simples no papel: ‘permite que os clubes transformem seu departamento de futebol em uma empresa, separando as dívidas antigas e abrindo espaço para investidores privados’. O que, na prática, foi uma tentativa de profissionalizar o futebol e atrair capital novo para um mercado que movimenta bilhões, mas que, até então, era administrado mais por paixão do que por planejamento.
Financeiramente, as SAFs ofereceram um respiro, ou seja, capital imediato, reestruturação de dívidas e promessa de gestão profissional. Mas, as transformações que acontecem através das SAFs no futebol brasileiro não parecem apenas administrativas – são culturais. O clube, que antes pertencia simbolicamente à torcida, passa a ter donos, investidores, acionistas. E o torcedor, que se sentia parte da instituição, agora observa à distância decisões tomadas por conselhos empresariais e fundos internacionais, ou seja, o futebol, como quase tudo, também virou um ativo.
Como nem tudo é sempre maravilhas, o sucesso financeiro e técnico das equipes, melhor, das SAFs, veio acompanhado de críticas – os ingressos, em muitos casos, se tornam inacessíveis para o torcedor médio, e a distância, o abismo financeiro entre clubes ricos e pobres só aumentou. A “romantização” do futebol deu lugar à lógica de performance e lucro, o que pode ser um alerta para o Brasil: enfrentar o desafio de equilibrar a modernização, sobretudo financeira, sem destruir a identidade.Mesmo com tantas equipes já vivendo esse novo modelo no Brasil, e tantas ainda por se integrarem, aqui, a resistência é visível. Muitos torcedores – especialmente os mais antigos (aqui eu me incluo), sentem que a transformação em SAF soa como uma espécie de “venda da alma” do clube. O sentimento de pertencimento, construído ao longo de gerações, parece ameaçado quando o escudo passa a ser administrado por estrangeiros.
O Esporte Clube Bahia, ou só Bahia mesmo, é um exemplo emblemático. O clube, historicamente ligado à cultura e à identidade baiana, agora faz parte de um conglomerado global com sede em Manchester. A torcida se divide – de um lado, quem vê na SAF uma chance de evolução; de outro, quem teme perder o caráter popular e independente que sempre caracterizou o Esquadrão de Aço.Do outro lado, ou seja, do lado do rival Vitória, ainda associação civil, aproveita a narrativa para se afirmar como “o último bastião da resistência”. A rivalidade, que sempre foi de campo, agora também pode ser entendida como ideológica, isto é, o que é ser um clube ‘de verdade’ no século XXI? Seja como for, é importante reconhecer que as SAFs não são fórmulas mágicas e os mesmos investimentos privados que podem resgatar um clube também podem destruí-lo. Aí já é assunto para um próximo texto.Ante o exposto, a verdade é que o futebol brasileiro precisava mudar.
A era da improvisação e das gestões amadoras estavam no limite. As SAFs, ao mesmo tempo em que representam uma tentativa de sobrevivência, também espelham um caminho que parece sem retorno, quero dizer, o futebol nunca mais será o mesmo.Quiçá, o desafio agora, sobretudo no Brasil, seja preservar o essencial do futebol: a paixão. Porque, se o futebol é paixão, ele também é identidade, história e comunidade; é o bar do bairro, o pai e o filho no estádio, o casal que torce por times diferentes e vão juntos ao estádio […] o grito que atravessa gerações. Em outras palavras, a SAF pode ser vista como investimento de risco, para alguns, com alto potencial de ganhos no médio/longo prazo, para outros, mas também com grande exigência de disciplina financeira, governança profissional e paciência da torcida. E em nosso caso, no Estado da Bahia, quando o Bahia entra em campo, nós, torcedores queremos vitória, não balanço financeiro. E é nesse dilema – entre amor e gestão, emoção e lucro – que o futebol brasileiro – e baiano – escreve seu novo capítulo. Mas, não custa lembrar: nem sempre quem tem mais dinheiro ganha o jogo.
Por Carlos Alberto, Conectado News


